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UM ENIGMA ou NÃO UMA ESFINGE.

“Eu te amo como uma coisa que sequer sabe que ama outra coisa”. 
(Conto “O ovo e a galinha”, em Todos os contos, 2016)

Quando ouço alguém falar que tem medo de ler Clarice Lispector eu tento não ficar surpreso, falar para a pessoa que não precisa de tudo isso, que Clarice não morde. Mas a verdade é que sempre que digo isso estou mentindo, ao menos em parte. O que causa mais espante: a esfinge ou o seu enigma?

“Lendo tudo em todas as cores”, Apolo Andrade é estudante da graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, produz conteúdo, edita e gerencia o perfil literário Leitor Albino desde de 2016, atualmente conta com a parceria das editoras Nua e Madrepérola, além de vários autores independentes e projetos publicitários. 

Como bom clariceano que sou eu tento incentivar as pessoas a conhecerem a patrona da literatura pernambucana, indico por onde começar com os contos de “Felicidade Clandestina” (1971) e o romance de “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” (1969), assim como quais caminhos só seguir com o tempo em que o coração estiver aberto para todo o sentimento que Clarice depositava em cada obra – todas partes de si, de amor e fúria. 

Para muitos um mistério em forma de gente, para outros algo que ainda não temos um substantivo próprio o bastante para além de sua alma. 

Mesmo carregada de uma elegância que só dela, com seus erres, Clarice Lispector era mãe, irmã, dita nordestina e alguém que colocava em palavras o que sentia. Ah, e uma estrangeira. 

“Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia mais homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo.”

Livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, 1969.

A literatura de Lispector é carregada de narrativas “sobre o nada”, mas nem sempre os planos de fundo são tão importantes. Na verdade, se você quer ler Clarice, entender o que ela fala, repare nas personagens: crianças, idosos, mulheres, animais, a praia. 

Em seus escritos podemos encontrar tudo o que nos pode parecer quotidiano, corriqueiro; mas são sempre as personagens do nosso dia-a-dia e que se mostram distantes nesse mesmo espaço de tempo: as crianças que não compartilham o mundo adulto, os idosos que não são mais seres operantes para a máquina do capital, as mulheres casadas e que muitas vezes se calam ou são caladas pela “vida do lar”, os animais que não compartilham das mesmas linguagens que as nossas e essa outra parte do mundo tão bela, mas nem sempre ao nosso alcance. 

“Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça.”

Trecho do conto “Uma galinha”, do livro Todos os contos, 2016.

Ler Clarice Lispector é entrar em contato com o que há de mais simples na gente, mas que nem sempre entendemos ou sabemos dar voz. Ler Clarice é conseguir olhar ao nosso redor e entender o que compõe o mundo além do nosso umbigo, é levar uma mordida de uma parcela de realidade outra, mas tão cara a nossa vivência nesse mundo onde todes são iguais até certo ponto. 

Porém, ler Clarice pode continuar sendo um mistério, e tudo bem, afinal não temos todas as respostas e saber além de 42 não teria graça nenhuma e talvez perdêssemos a vontade de viver. 

“Olhar-se no espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.”

“A surpresa”, no livro A descoberta do mundo, 1984.

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